quarta-feira, 30 de junho de 2010

Dica


Transamérica é um título feliz para um road-movie que mostra o drama de identidade vivido por um transexual.
Stanley, ou melhor, “Bree”, o (a) protagonista, não é um homem que gosta de outros homens; tampouco ele é um travesti que goza de parecer mulher, mas goza também do seu órgão sexual. Bree tem certeza de que é uma mulher no corpo de um homem.
Talvez mais do que as mulheres do sexo feminino, Bree acredita saber o que é preciso para ser mulher. Essa questão não é tão simples de responder. Já sabemos que não se trata de ter ou não um pênis. Não é isso que garante a identidade sexual.
O grande debate dos anos trinta, que fomentava as discussões nos meios psicanalíticos, versava sobre o que é e o que quer uma mulher, questão sobre a qual Freud já havia se interrogado. Freud e Ernest Jones divergiam sobre a natureza da feminilidade. A mulher nasce ou é feita? É “born”, dizia Jones; é “made”, respondia Freud. Nada do que pensamos ser do domínio da feminilidade dá conta do que é ser uma mulher. É ser mãe? Não. Não há nada mais fálico para uma mulher do que um filho; a histeria, tão comum entre as mulheres, sobretudo na época, é uma posição masculina, ancora-se numa reivindicação fálica.
Bree sente-se mulher, comporta-se como uma mulher, usa o nome de mulher, educa a voz para falar no timbre de uma mulher, veste-se e cuida-se como uma mulher, ou seja, faz semblante de mulher. Ser homem ou mulher está no registro do semblante. Entretanto, para Bree, o seu pênis encontra-se ali, como um estorvo, objeto de nojo, um pedaço de carne entre as suas pernas que não pode ser erotizado. O seu pênis não é elevado à dignidade de falo. Mas ausência do pênis (made ou born) também não garante que ali há uma mulher.
Bree solicita a transformação cirúrgica por ter a certeza de que a sua identidade não corresponde ao seu sexo biológico. Sabemos que a ciência oferece resposta para o mal-estar do sujeito com relação ao corpo, através das cirurgias plásticas e do uso de hormônios. As intervenções cirúrgicas resolvem no real da carne o que antes era o incontornável biológico com o qual o sujeito tinha que se haver. Descartado o objeto indesejado, supõe-se colocar em conformidade sexo e gênero, ou seja, anatomia e identidade sexual.
Supondo que a anatomia não determina o que é ser uma mulher e que a mulher não nasce feita, não há um paradoxo na crença de que a cirurgia promove uma verdadeira transformação? Talvez a análise da cirurgia como solução para que alguém se transforme em mulher só possa ser vista no caso a caso. Não é muito comum a chegada de transexuais na clínica psicanalítica, pois não há questão, só a certeza; a ciência tem uma oferta irresistível, por que se submeter ao esforço subjetivo que uma análise implica? Homens e mulheres, hetero ou homo, vivem também um desconforto com o corpo e o sexo biológico, mas arranjam-se com isto. O transexual, não. A angústia transborda, as passagens ao ato são freqüentes, a vida afetiva e sexual é elidida para muitos, pois é um confronto direto com a angústia de ver cair o semblante que o sustenta, então é melhor ‘viver na surdina’.
Essa questão é polêmica e extremamente delicada. Para alguns transexuais a cirurgia evita um suicídio ou reduz o estado de uma angustia insuportável; para outros, leva ao suicídio. A verdade é que a demanda de mudança de sexo é cada vez mais freqüente e o critério cada vez mais superficial para uma questão tão enviesada.
Bree havia conseguido autorização para “consertar esse erro da natureza”, depois de passar por terapia e uma entrevista com o psiquiatra. O seu diagnóstico é disforia sexual, que consiste num sofrimento intolerável pela dessimetria entre o seu sexo anatômico e a sua identidade sexual. Acompanhamos o seu desconforto ao longo do filme e torcemos para que ela consiga.
Um ‘acontecimento’ faz com que a terapeuta lhe chame e diga que a cirurgia precisa ser adiada, para não correr o risco de autorizar a cirurgia e deixar que Bree continue se achando incompleta. Ou seja, para a terapeuta existe a mulher completa. Sob qual argumento isso se sustenta¿ Acaso não é próprio do ser humano ser incompleto¿ homens e mulheres não estão sempre buscando a completude impossível?
Felizmente, houve um acontecimento para adiar a cirurgia, pois surge em cena um filho delinqüente de Stanley, numa relação que ele teve anos atrás e que ele diz ter sido quase lésbica com a mãe desse garoto, que se chama Toby. Isso indica que ‘ela’ já foi ‘ele’ o que, no mínimo, exige que ela pense sobre isso e se ocupe do filho. O filho também é um estorvo no início, afinal este, assim como o pênis de Bree, são objetos concretos demais. Toby o remete ao antigo Stanley, seu nome de batismo.
A terapeuta lhe adverte que ela não pode descartar esse filho, como está prestes a descartar o pênis. O uso do advérbio “felizmente”, se deve ao fato da vida de Bree tornar-se menos mecânica, como se houvesse antes uma equivalência entre a realização da cirurgia e a felicidade. A sua vida era uma preparação, treinamento, tratamentos e a espera pela transformação final.
Nos dias em que é obrigada a conviver com o filho, ela exercita a maternidade, tem um encontro com um homem que a paquera, confirmando a sua feminilidade, confronta-se com sua família, nada fácil, para deixar Toby em segurança. A mãe de Bree é excessiva, parece um travesti, o pai é uma peça decorativa e a irmã, uma alcoólatra em abstinência.
Esse é o salto dado por Bree na sua viagem com filho pelos Estados Unidos. Há uma verdadeira transformação dela e também do filho, entre a saída e a chegada, o que é comum nos road movies. A cirurgia não deixa de ser importante, mas ela passa a desejar para além disso.
A interpretação de Felicity Huffman é surpreendente. Seria mais fácil colocar um homem interpretando um transexual, mas o diretor opta por ressaltar a dimensão de semblante que há na escolha (insondável) da identidade sexual. Felicity ‘faz semblante’, pela própria natureza da interpretação, de ser um homem que se acredita mulher, mas só o sabemos por que nos é dito nos créditos. Também por ela ter ganhado o Globo de Ouro de Melhor Atriz, além de indicada ao Oscar na mesma categoria.
Tudo é um parecer ser alguma coisa. Isso também é ressaltado na cena em que Bree e o filho se hospedam na casa de um transexual, num dia de festa. Lá estava homens que já haviam sido mulheres, a dona da casa que já havia sido homem, entre outros transexuais e não transexuais. A mulher que menos convencia era a mulher ‘não sintética’, a mulher que não era transexual.
Transamérica não é um filme que visa promover o debate sobre o transexualismo, não interpreta e também não caricatura. Por isso mesmo a personagem ganha credibilidade, o que nos permite que algumas questões sobre esse tema sejam introduzidas. É um filme de trato leve, bastante envolvente. Bree diverte, comove e nos leva a um universo diferente, estranho e familiar ao mesmo tempo.

Tereza Sampaio
Delegação RN

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